27.12.06

Meu protagonista.

Ele não se aproximou aos poucos; foi logo assumindo o papel principal. Era alto, tinha uma projeção de voz incrível e uma presença de palco que a menina julgava inexistente. Foi fácil descobrir que ele era perfeito para o personagem de uma vida inteira, para o par romântico daquele roteiro com final feliz.

22.12.06

Só tenho dois minutos.

Ele sabia que ela tinha uma mania feia de derrubar tudo ao redor e queimar as pestanas com o isqueiro. Ela sabia que ele nunca ia conseguir decidir se queria mesmo o branco com o escudo tortoise. Eles se entendiam, a desastrada e o volúvel. Bateu uma saudade grande na menina e ela resolveu telefonar antes de dormir, só pra mandar o beijo que foi interrompido por falta de pagamento. Promessa de beijos enormes, saudade, falta só mais um pouquinho, força. A ligação também foi cortada, fim dos créditos. Depois da despedida truncada, ele voltou pra mesa e pra todas aquelas outras pessoas que ele nem fazia tanta questão de ter por perto naquele instante; queria mesmo era a menina que queima os cabelos quando vai fumar. Ela guardou o telefone dentro do tênis xadrez, ainda incompleta, virou de lado e fechou os olhos com o intuito de sonhar com o menino lá na praia. Acordou no dia seguinte, olhou pro lado direito esperando encontrar ele ali, sem camisa e com um pouco de dificuldade de respirar, uma esperança boba e típica de quem acaba de ter um sonho bom, mas nada, só a vela que queimou até o fim. Sozinha, naquela caixa de ângulos retos e pé direito alto demais, pensou: sou dele até mais do que eu normalmente julgo ser, incrível.

1.11.06

lista #001

» pouca bagagem de mão
» recorde mundial de velocidade
» lado esquerdo
» cinco minutos
» família e uma escapadinha
» palavras bonitas
» retiro espiritual
» mãos dadas
» filmes ruins no cinema
» sushi e a blusa listrada bonitona
» um menino, o menino
» apartamento multicolorido
» filmes bons em casa
» pipoca doce e salgada
» e dias mais bonitos

17.10.06

|T|udo |P|reto |M|omentaneamente

Ontem acordei cansada daqueles mesmos olhos grandes, escuros e tediosos me olhando de volta sem nenhuma curiosidade no espelho embaçado por causa do vapor. Passei a manhã inteira aborrecida com aquele meu jeito de andar e falar tão sem graça e principalmente com aquele meu problema de audição estúpido que em dias mais bonitos já me pareceu tão charmoso. Sem vontade de fazer nada ou de interagir com mais ninguém além daquela pessoa que hoje era um enigma, mas da qual não podia escapar, passei a tarde toda no meu quarto de paredes completamente brancas. O tempo inteiro sem paciência para aquelas mesmas músicas no meu computador, aquelas mesmas roupas no armário, aquelas mesmas palavras no livro vermelho e aquelas mesmas sardas no corpo inteiro. Tudo idêntico a sempre. Dominada por uma ambição de trocar de corpo e de ir pra um lugar bem distante a fim de ver cores e pessoas inusitadas evitei o resto do mundo. Estava tão cansada de tudo aquilo que até dormir foi difícil. Alcançava apenas um sono inquieto e facilmente perturbado, consciente da vontade de dormir, consciente da incapacidade de relaxar, um sono que não buscava o descanso, não almejava sonhos, ansiava apenas pelo fim daquele dia impraticável. Ontem era impossível lembrar que o episódio desastroso era temporário, mas hoje já voltei a achar minhas sardas únicas e delicadas e amanhã com certeza volto a enxergar turquesa e magenta por todo lado.

Namorada.

...love’s just a game, broken all the same
and I will get over you

love’s just a lie, happens all the time
swear I know this much is true...

- Déa, se prepara que lá vem o hooooooo woooooo wooooo woooooo wooo hoooooooo.

E era todo dia assim, durante aqueles dias em que eu precisava dela e ela de mim e que selaram uma amizade para sempre. Uma daquelas amizades boas que só acontecem de vez em quando e dão direito a cereja gigante, milhares de quadradinhos brilhosos, arroz na China, ponto de ônibus e travesseiro, bolinhas e xadrez, labirinto na neve, trilha sonora, sacos enormes da melhor pipoca doce, jardins bonitos e luvinhas coloridas sem dedo. Daquelas que dão de presente lembranças cintilantes e momentos que podem ser revelados da forma certa com apenas quatro cores.
Saudades dela.

6.10.06

06 + 10 + 06 = 1/4 x 100

Vinte e cinco anos foi tempo suficiente pra fazer tanta coisa bonita e ainda sobrou tempo pra algumas coisas absurdas. Só me arrependo das várias vezes que fingi não saber que era a hora certa de dizer que eu estava enganada. Mas nem esses momentos submersos em medo e orgulho me impediram de ver, ler e ouvir muito, andar infinito e conversar sobre o impossível.
Sabe o que eu já fiz?
Com certeza bem mais de trinta e quatro milhões de coisas. Já deitei de braços abertos na areia fria e laranja daquele deserto bonito olhando pra cima à procura de formas anômalas voadoras durante uma madrugada inteira, uma vez assisti a uma chuva de meteoros no meio de uma floresta bem longe das luzes da cidade enquanto escutava Dylan me falando pra não pensar duas vezes, em uma dessas tardes que ficam mais ou menos no meio da linha atual eu vi um polvo mudar de cor e textura com uma naturalidade invejável e usei o esqueleto de uma baleia como meu trono surreal, várias vezes tomei sorvete azul com aquele meu amigo alto demais enquanto andava despreocupada nas ruas daquela cidade muito antiga cantarolando músicas italianas felizes, uma noite assisti ao vivo àquela banda que nomeou um álbum de sujo e na mesma noite a filha da Gordon decidiu entrar no palco rodopiando de braços abertos e olhos fechados, fui responsável por aferir radiação, lavar tubos de ensaio e brincar com crianças, conheci um monte de gente legal e já também esqueci o nome de um monte de gente legal e há pouco tempo encontrei meu par no meio de várias pessoas que desconheciam a importância daquelas palmas.
Hoje, assim que acordei, escolhi vinte músicas especiais e salvei como a playlist do dia seis, li um e-mail lindo que falava de coisas fora do comum, acendi um incenso verde, bebi um copo de água bem gelado, escrevi isso e agora vou levantar da cama e começar a viver meu segundo quarto de século.
Vai ser tão bom.

26.9.06

Reflexo.

Estava tentando avistar a cidade lá fora, mas as pessoas ali de dentro ocupavam todo o espaço disponível naquele material cristalino. Continuei insistindo até que no meio dos reflexos impertinentes encontrei você. Na verdade não era apenas você, era o futuro fantasiado de imagem refletida. Através daquele oráculo moderno, te vi sorrindo, passando a mão na minha perna, fumando um cigarro e então consegui enxergar além dos ali presentes, mas não pra ver a cidade viva do outro lado e sim eu e você depois de muito tempo, depois de muita coisa. Um prenúncio de um futuro bonito.

21.9.06

Três coisas sobre elas três.

Déa
Primeira coisa. Ganhei de presente e não devolvo mais. Qualquer pessoa que a tem por perto a considera um presente e secretamente deseja que ela fosse um bibelô pra levar no bolso pra cima e pra baixo.
Segunda coisa. Ela sabe exatamente o que fazer pra transformar meu dia. Colocar uma música no som do carro que eu precisava ouvir, ou uma poesia musicada que foi feita pra mim, dar um beijo e um abraço apertado na hora certa, ou simplesmente falar de uma entrevista sobre amor e paixão que viu na tv.
Terceira coisa. A Déa canta em voz alta comigo dentro do carro e ainda faz as coreografias enquanto dirige. Nada melhor do que “maybe I’m a fool for walking in line”.


Primeira coisa. Ela é a única pessoa que conheço que consegue falar mais e mais alto do que eu e mesmo assim ser a coisa mais querida.
Segunda coisa. Tem o sorriso mais gostoso do mundo, que conserta tudo de errado ao redor em apenas alguns poucos segundos.
Terceira coisa. É a minha amiga gata massa da praia e do shopping. Parece que ela nasceu do lado do mar, tem relógio da praia, come docinho da praia e vive bronzeada.


Primeira coisa. Ela tem uma risada que assusta e apaixona. Só ela consegue isso e o melhor é que a risada muda com o tempo.
Segunda coisa. Mais tranqüila do que essa morena cor de jambo dos olhos tão verdes que parecem transparentes não existe. Ficar do lado dela, vendo um intestino gigante cor de rosa e ponderando onde é o apêndice é quase uma terapia.
Terceira coisa. Acho muito lindo como ela trata pessoas que nunca viu antes como se fossem amigos íntimos e como essas pessoas nunca se sentem desconfortáveis. Comigo foi assim. Conheci-a e no mesmo dia ela já prometeu pintar um mural numa parede do meu quarto novo, requisitou apenas música, tintas, amigas e um lanche.

18.9.06

Menta com chocolate.

Ela olhava e sorria sem controle, finalmente encontrou o menino. O desconhecido dela, só dela, aquele que nem precisava de prefácios ou títulos. Continuou olhando, esperando que ele a notasse e percebesse que ela era a desconhecida dele, aquela que ele sempre procurou sem saber. Mas não tinha pressa, estava apenas feliz em finalmente o ver materializado, até então achou que ele fosse apenas um sonho feliz. Foi então que um barulho estrondoso, daqueles que só os que amam escutam, o fez abrir os olhos e a ver bem ali, tão perto, tão real. Logo que a viu não acreditou muito, achava que aquele tipo de sensação só existisse em devaneios bonitos. Mas depois dessa noite boa, ele passou a ser tão dela que tudo antes do barulho ensurdecedor ficou com um jeito de invenção boba e ela tão dele que o futuro ficou com um gostinho bom de menta com chocolate.

17.9.06

Ele, elas e aqueles outros dois.

Ele só encontra as meninas erradas, beija as bocas erradas, segura as mãos erradas, sonha os sonhos errados. Procura a sua menina e só encontra aquelas de temporada. Todas seguem em frente, com destino já conhecido, ou aquele ali com jeito de rebelde ou aquele outro lá que finge ser um monte de coisa. Ele, um coadjuvante sensível, é muito diferente dos outros dois que são protagonistas demais pra se preocupar com um outro alguém, então assiste quietinho enquanto as meninas erradas aos poucos descobrem que aqueles outros dois não são donos de encanto algum. Protagonistas sempre são sem graça, mas toda menina quer conseguir um papel principal, fazer parte do par romântico da história, só depois de um tempo cansam da pressão e tentam voltar pro coadjuvante charmoso, mas aí é tarde, ele já encontrou uma outra aspirante a protagonista que logo não será mais sua. O gostoso desse lero-lero romântico é saber que qualquer dia desses de um céu bem ciano ele vai encontrar uma coadjuvante tão linda e interessante quanto ele que também sonha com o diferente, a menina certa.

10.9.06

Seis coisas.

Gosto muito de você e aqui vai então um pouco de mim.
Não existe nenhuma ordem de importância nessa listinha, nem sei se essas são as coisas que realmente fazem de mim essa Rafaela que vocês conhecem.

Primeira coisa. Sou uma pessoa que alguns classificariam como visual. Adoro cores, cor nunca é demais, na verdade quanto mais, melhor. Está tudo na arte de saber não-combinar-combinando. Xadrez com estampa de oncinha pode ficar lindo e guaraná Jesus é muito mais gostoso porque é rosa.
Segunda coisa. Gosto de dar tudo meu que já não uso mais pra a pessoa certa. Também adoro ganhar a coisa certa de pessoas mais certas ainda. Pulseirinha, sandália, quadro colorido, encarte de cd, camiseta com estampa de oncinha azul.
Terceira coisa. Vicio numa música nova toda semana. Aí escuto a mesma música pelo menos duas ou três vezes por dia, até a música da semana seguinte transformar a velha favorita em obsoleta. Algumas favoritas marcam tanto que até enchem meus olhos de lágrimas felizes, como "love’s a game" que só me lembra um ônibus e aquela amiga que ganhei de presente no meio daquele monte de casinhas em cima de árvores.
Quarta coisa. Demoro muito pra entender coisas que não são diretas. Por isso não tente ser discreto do meu lado, eu vou insistir pra você ser mais óbvio até conseguir entender. Estou até melhorando um pouco no código de meninas. Já sei até o que é um "bom dia", mas falar que uma saia curtíssima é uma saia grande ainda é de difícil decodificação pra mim.
Quinta coisa. Sou completamente fascinada pelo novo, por isso às vezes fico meio entediada no meu dia a dia. Quando isso acontece só preciso ver um filme novo, descobrir alguma banda, conhecer alguém legal, assistir uma peça bonita, sair pra fazer algo que nunca fiz mesmo que seja só assistir a tarde acabar lá no infinito, aí já fico melhor por um pouco mais de tempo.
Sexta coisa. Tenho uma memória péssima, mas guardo com todo cuidado pequenos tesouros de coisas que já ficaram mais pra trás nessa linha estranha que é o tempo e que só me lembram coisas boas. O abraço de cinco minutos numa contagem completamente alternativa, minha amiga me esperando na parada de ônibus com um travesseiro e sacolas com comida, uma outra falando que era um strass, meu irmão pulando em cima de mim, papai levando vitamina pra minhas amigas cedo demais, intestino gigante cor de rosa e uma nova menina, caminhadas longas demais de volta pra casa com ela que nem usa mais aparelho ou óculos, banhos de piscina sem motivo aparente, cereja gigante com neve, café com menta, um cigarro com toque de tangerina e o meu artista inconformado, abraço escondido no corredor do trabalho. Posso não lembrar o nome da menina que estudou comigo na sexta série num colégio que nem lembro mais o nome, ou o dia em que falei que não queria mais ser advogada, ou o dia em que decidi largar a biologia, mas as coisas importantes mesmo estão bem guardadinhas. Vocês todos estão bem aqui comigo, sempre.

O menino.

Só quem estava na plataforma era aquela senhora que há uns quinze minutos me apontou o caminho certo e que agora varria o chão sem muita preocupação de realmente limpar. Já tinha um tempinho que eu esperava pelo fim daquela cena longa demais e sem nenhum elemento surpresa, com o pensamento voando longe e flutuando perto do meu menino, quando vejo uma pessoa correndo lá longe, um menino, não o meu, mas provavelmente da mesma idade. A angústia que ele sentia ao ficar frente a frente com a possibilidade de perder aquele trem estava estampada em todos os seus movimentos. Ele corria e eu, secretamente e sem muito saber o motivo, torcia para que as portas continuassem abertas e o trem não começasse a apanhar velocidade deixando aquele menino que estava claramente em uma missão ali sozinho. Conseguiu. O trem parecia ter esperado exclusivamente por ele. O menino passou um minuto parado, olhando pro chão e recuperando o fôlego, depois examinou o bilhete amassado que tirou do bolso e veio em direção ao assento vazio bem em frente ao meu, onde eu já havia colocado minha bolsa e minhas revistas e já estava planejando apoiar os pés durante a viagem. Retirei minhas coisas e ele nem notou, respirava fundo. Cabelo castanho assanhado, pele muito branca, olhos verdes, barba mal feita, roupa amassada e um piercing na boca com o qual ele brincava enquanto tentava conseguir o que parecia impossível, colocar aquela mochila grande demais pro tamanho dele no compartimento acima dos assentos. Um senhor que estava sentado do meu lado o ajudou. Depois de brigarem com aquela mochila de proporções absurdas por alguns minutos, eles conseguiram, o menino agradeceu e ambos assumiram suas posições de viagem.
Durante o percurso, meu novo objeto de observação folheou uns três jornais diferentes, umas duas revistas e um livro enorme, mas com certeza não conseguiu ler uma frase completa em nenhum deles. Foi para área de fumantes umas cinco vezes, mas não fumou nenhum cigarro até o fim. Não conseguia terminar nada, algo muito importante estava prestes a acontecer e eu ia presenciar esse fato tão perturbador. Eu o observei a viagem inteira sem permissão, mas ele em nenhum momento notou o meu olhar bisbilhoteiro. Eu era para ele uma mera passageira, apenas uma coadjuvante, enquanto ele era o protagonista da história do dia, tanto do meu dia quanto do dele. Descemos na mesma parada e eu como sempre perdi o meu trem umas duas vezes, nunca sei direito para onde ir. Enquanto isso, eu prestava atenção no protagonista. Ele andava para um lado e para o outro, esperando uma vida inteira em quinze minutos, desejando o depois. Os trens chegavam, partiam e ele continuava ali, impaciente, com certeza esperando alguém que nunca deveria ter ficado longe. Um trem vindo de Lisboa parou e ela desceu correndo, a primeira a desembarcar. Eu presencie o fim da história do dia, tão lindo. Um abraço demorado, um beijo carregado de saudade, de vontade, sorrisos sinceros. Ele passava a mão no cabelo dela como se não acreditasse que fosse de verdade e ela o apertava para que ele não voasse longe. Um sonho. Aquela plataforma cinza e suja não existia, para eles era tudo céu, qualquer coisa fora aquele azul que os envolvia era bobagem, besteira.
Finalmente entendi qual trem me levaria pra Coimbra. Entrei e os protagonistas ficaram pra trás, abraçados, felizes. E eu continuei com o meu papel de coadjuvante do dia, podendo apenas sonhar com o menino que foi feito pra mim e que ficou longe. Não quero mais essa distância totalmente dispensável. Será mesmo que não tem um trem que cobre o trecho Porto/Fortaleza diariamente?

20.8.06

Shoreline 7/4

Passei o dia inteiro andando pelas ruazinhas da cidade do Porto. Ruazinhas estreitas, de pedrinhas. Prédios velhos, de cores conflitantes, amontoados, sujos e com azulejos quebrados. Um charme. E o tempo todo faltava aquela pessoa do meu lado, faltava você. Pra que eu pudesse apontar pra qualquer besteira que me interessasse e ser ouvida com todo carinho possível nesse mundo. Faltava você pra me abraçar na hora certa e me dar um beijo no momento perfeito. À noite fui jantar na Ribeira, à beira do rio Douro, as luzes azuis e vermelhas dos bares refletidas na água. Pessoas do mundo inteiro caminhando sem pressa de chegar a lugar algum, apenas com a vontade implícita de ser somente o que o momento pedia. Mas a minha sensação de incompletude diurna persistia, ainda faltava você. Você que é tão bom em contar histórias, você que é tão bom em me amar. Voltamos pro hotel depois do jantar, conversei com minha mãe um pouco e deixei uma lágrima escapar, daquelas que eu guardo com tanta dificuldade. Ela perguntou o que era e expliquei que era a dor da falta de um pedaço meu. Ela dormiu logo em seguida, depois de tentar me consolar dizendo que o tempo passa rápido, apesar de o minuto aqui continuar tendo 60 segundos. Liguei a televisão pra me fazer um pouco de companhia e lá estava você na forma de um festival português. Você está em tudo, em todo lugar. Quando liguei a televisão estava começando a tocar a nossa banda, porque nós temos uma banda e não apenas uma música e eles estavam tocando aquela música que só por causa de você eu sei que o andamento é sete por quatro. Você me explicou com toda a paciência de quem ama o que era um andamento e como funcionava o sete por quatro. Explicou também como os americanos não sabem o que é um quatro por dois e chamam de quatro por quatro slow. Depois disso, as lágrimas que eu estava contendo com tanta precaução fluíram aos poucos e compassadas seguindo o ritmo daquela música que só me lembra você.

29.7.06

Preview.

Eu estava participando de mais um ensaio sem graça de um espetáculo que deveria ser encantador quando você entrou em cena acompanhado daquelas explosões mudas que só eu era capaz de perceber. Elas destruíram sem muito cuidado minhas falsas idéias de felicidade tranqüila e instalaram entre nós uma harmonia que eu desconhecia. Mas agora ando tendo dificuldade de dialogar com os nossos desencontros; tenho medo de sem querer transformar o certo em errado.

1.7.06

Blá Blá Bá.

De madrugada, no banheiro, com mais quatro amigas chorando e ao mesmo tempo rindo. A vida é muito mais complicada do que deveria ser. Cadê a merda do intestino grosso cor-de-rosa? Nunca vou combinar nada com ninguém assim como a Rafa não combina as roupas. Fica tudo mais colorido. Quando a gente usa pulseira no mocotó, até topa um reggae no Trapiche. Que nome engraçado. Dou dois beijinhos ou logo um beijo na boca? Se o tchau foi dando beijo na boca, o oi é do mesmo jeito. Hoje é definitivamente o dia de encontrar minha metade maranhense. Não basta o hippie do Reviver? Claro que não! E uma de fora da ilha perguntou, ele fede? Minha resposta, cheiro natural, sem perfume. Pra gente, não ter um cheiro químico, manipulado, é fedor. Eu juro pra mim mesma que não foi verdade. A nova moda é só a identidade. Por isso eu sempre olho, mas dessa vez eu levei um susto. Estou só escrevendo e pensando no meu músico que está longe. Quem faz escova, cria um subgrupo. E todo mundo encontrou Jesus, enquanto vivia um sonho cor-de-rosa...

14.6.06

Untitled.

Olhei várias vezes, ainda assim demorei um pouco para decifrar a proposta. Quando finalmente entendi, fui comprar uma água e me encantei rápido, mesmo sem título. A partir daí me vi imersa numa história que começou sem introdução e pulou direto para os capítulos do clímax. Só espero que isso tudo seja mais do que um esquete e lembre um pouco aquela historinha daqueles dois descalços no parque.

O trivial e a tragédia.

Aqueles que são fiéis conhecem apenas o lado trivial do amor.
O infiel é que conhece as tragédias do amor.

* Lorde Henry em O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde

12.6.06

Início do ato II.

Menina, olha pro lado. Você já passou do seu ponto há muito tempo. Desce agora, depressa e sem cautela, não tem problema nenhum ser tarde. Você só vai precisar andar um pouco mais até chegar lá. Eu sei que você está cansada e que a idéia de andar tem som de tempestade, mas vai ser bom. São apenas algumas quadras, a distância perfeita para curar a dor desse desassossego. Você já sonhou com o fim que é o mais difícil, então agora desce correndo e improvisa. Anda até chegar e no caminho grita toda a tua angústia, cospe essa mágoa, abandona a aflição logo na primeira esquina. Por favor, olha pro lado. É, pra qualquer lado. Tá vendo aquele pedaço de sonho bem ali ou aquela cortina negra ainda persiste? Sei que é complicado acreditar no impossível, mas prometo que ela vai desaparecer. E aí é que o espetáculo vai começar, o espetáculo de ser feliz de novo.

9.6.06

Sobe?

Entrei acompanhada do meu fone de ouvido e de um gatorade rosa que, como diz um amigo, é apenas um saquinho de tang diluído em vinte litros de água. Estava meia hora atrasada como sempre quando ele entrou no elevador de terno azul quase preto, mochila laranja e uma garrafa de água mineral na mão. Comecei a imaginar a vida desse homem com jeito adolescente, afinal naquele elevador apertado e cinza ele era o mais sedutor, mas era tudo mais previsível do que eu esperava. Passei então para a próxima pessoa; uma mulher que devia ter por volta de quarenta anos. Ela olhava fixamente para frente, usava uma roupa apertada demais e os cabelos presos de uma maneira quase caricata. Tentei invadir o inconsciente dela só por diversão, mas andava muito triste para sonhar. Será que ela sabe que é feita praticamente de espaço vazio e o que a mantém sólida são interconexões entre coisas que são interconexões entre outras coisas e assim por diante? Acho que não, mas nem importa. O elevador chegou ao décimo sexto andar e eu ao meu destino. Mais um dia de trabalho.

7.6.06

"Dust"

Man: Did you sleep with her?
Woman: Time to go to sleep.
Man: Did you?
Woman: Don't forget to set your alarm.
Man: Are you going to answer me or not?
Woman: Not.
Man: I want to know.
Woman: What would you do if I said "yes?" Use it as an excuse to go out and find some new sexual thrill? Some kinky, brutal male thing involving blood and dismemberment?
Man: No! I'd just want to know why. I'd want to know what it was I wasn't giving you that you had to go somewhere else. I'd want to know so that I could learn how to give it to you, whatever is was you needed to stay with me. Forver and ever. Because I love you more than life, and I would do anything -- anything! -- to keep your love.
Woman: (quite overcome) Oh!
Man: But if you still left me after all that I'd probably just hunt you down and kill you.
Woman: That's not funny!
Man: I'm sorry.
Woman: Why did you have to ruin it? You said something sweet and real, and then you just had to say something horrible.
Man: I can't help myself. I'm a man. It's like there's this programming built into my head. Anytime I say anything that borders on emotional truth, I have to automatically compensate by saying something stupid.
Woman: Is that what it is?
Man: Pity me, I'm emotionally challenged by virtue of gender.

* Trecho da peça Dust de Michael T. Folie

"An Ideal Husband"

Mabel Chiltern: Well, Tommy has proposed to me again. Tommy really does nothing but propose to me. He proposed to me last night in the Music-room, when I was quite unprotected, as there was an elaborate trio going on. I didn't dare to make the smallest repartee, I need hardly tell you. If I had, it would have stopped the music at once. Musical people are so absurdly unreasonable. They always want one to be perfectly dumb at the very moment when one is longing to be absolutely deaf. Then he proposed to me in broad daylight this morning, in front of that dreadful statue of Achilles. Really, the things that go on in front of that work of art are quite appalling. The police should interfere. At luncheon I saw by the glare in his eyes that he was going to propose again, and I just managed to check him in time by assuring him that I was a bimetallist. Fortunately I don't know what bimetallism means. And I don't believe anybody else does either. But the observation crushed Tommy for ten minutes. He looked quite shocked. And then Tommy is so annoying in the way he proposes. If he proposed at the top of his voice, I should not mind so much. That might produce some effect on the public. But he does it in a horrid confidential way. When Tommy wants to be romantic he talks to one just like a doctor. I am very fond of Tommy, but his methods of proposing are quite out of date. I wish, Gertrude, you would speak to him, and tell him that once a week is quite often enough to propose to any one, and that it should always be done in a matter that attracts some attention.

* Trecho da peça An Ideal Husband de Oscar Wilde

6.6.06

Momento descompassado.

Cinco minutos longos, daqueles que duram horas, com regras que fogem ao meu alcance. Acompanhados de música, do céu de cor exclusiva e da pressa de conhecer tudo sobre o outro naquele pedaço de tempo sem lógica, mesmo sabendo que aos poucos e ritmado é sempre mais bonito. O fim chega sempre sem ser convidado. Invade intrometido, irritante, todo “indie”. Já a vontade, essa só aumenta.

2.6.06

Sonho vespertino.

Eu estava sentada com um grupo de pessoas que não conhecia. Ele era o meu único elo, a pessoa que fazia com que eu fizesse sentido naquela situação até ontem improvável. Começou a chover. Eu avisei, mas ninguém prestou muita atenção. Abriram um toldo verde e ele, com uma raiva lúdica que por sua natureza não tenho como explicar, fechou o toldo muito rápido. O rapaz do bar demorou mais de um minuto pra abrir e ele o fechou em dois segundos. Instantaneamente saquei um guarda-chuva amarelo de dentro de uma bolsa muito pequena. Quase uma Mary Poppins reformulada, de saia de bolinhas e sandália de dedo. Ele então desapareceu, imaginei que tivesse ido ao banheiro. Levantei da mesa, me despedi daquelas pessoas novas cujos nomes logo iriam desaparecer e fui andando na chuva sozinha até chegar no meu quarto. Deitei, dormi e acordei escutando o Beck cantar: “everybody is gotta learn sometime”. O filme tinha acabado. É incrível, sempre acordo no close pro fim.

30.5.06

Três minutos. Duas pausas.

Aconteceu faz tempo e fiquei calada, congelada, com a alma fora do corpo. Toda boba. Devia ter tido mais presença de espírito. Vai ver é daquelas coisas que precisa de treino. Ontem estava conversando sobre nada com um amigo e o velho evento ressuscitou. Amigo novo que gosta de Beatles, é ambidestro e tem pressa de sonhar antes de cair em sono profundo. Uma conversa cheia de pausas duplas para efeito de tensão; é que o amarelinho gosta de fazer charme. Ele falou que quando nessas situações, age da forma mais imprevisível: dá um abraço, agradece, dá um beijo. Próxima vez, já sei. Começo a cantar a primeira música que vier na minha cabeça e dou alguma pulseira colorida minha de presente pra pessoa. E todo mundo fica feliz.
Ou pelo menos, eu fico. Que é o importante.

26.5.06

É segredo, tá?

- Deus, eu estou com um problema.
- Qual o problema, Eva?
- Eu sei que você me criou, providenciou esse jardim lindo e todos esses animais maravilhosos, assim como essa cobra hilária, mas eu não estou completamente feliz.
- E por qual motivo, Eva?
- Deus, eu estou solitária e não agüento mais comer maçã.
- Bem, Eva, nesse caso, eu tenho uma solução. Eu criarei um homem pra você.
- Um homem? O que é isso, Deus?
- Uma criatura cheia de defeitos. Ele vai mentir, trair, ser tolo. No fundo, ele vai te dar muito trabalho. Mas ele vai ser maior, mais rápido, e vai gostar de caçar e matar coisas. Eu irei criá-lo de uma maneira tal que ele satisfará suas necessidades físicas. Ele irá se divertir com coisas infantis como lutar e chutar uma bola pra cima e pra baixo. Não será tão esperto quanto você, logo ele precisará de seus conselhos pra pensar de forma clara.
- Parece ótimo. (disse Eva de forma irônica) E o que eu preciso fazer, Deus?
- Bem, você pode ter esse homem sob uma condição.
- E qual é a condição?
- Como eu disse, ele será orgulhoso, arrogante, convencido. Então, você terá que deixá-lo pensar que eu o criei primeiro. E este será o nosso pequeno segredo. Você sabe, de mulher pra mulher.

* Adaptação de uma piada que recebi por e-mail.

25.5.06

Uma bola sabor azul, por favor.

Tenho um amigo muito alto, mais de dois metros de altura, pele de porcelana, cabelos e olhos negros. Ele mora numa casa branca de dois andares e janelas grandes que fica numa colina em frente a um rio.
A casa branca que tem cheiro de café é bem antiga. Foi construída num passado distante para abrigar uma funerária. Dessa época só resta o elevador retangular e baixo feito para transportar os caixões dos que já abandonaram essa existência frágil. Hoje ela abriga a excêntrica família desse menino alto e sem apegos materiais. Nessa casa da colina mora um enfermeiro hippie de cabelos lisos que faz a melhor lasanha do mundo, uma psicóloga de tranças e argola no nariz, uma jovem da minha idade de nome estranho e desejos ocultos, um adolescente gago que sonha com uma banda de rock e meu amigo alto. Eles habitam o segundo andar desse prédio antigo, no primeiro andar funciona uma sede dos Alcoólicos Anônimos.
Muitas das minhas tardes se passaram nessa casa. Eu e meu amigo passávamos horas escutando os anônimos nos contarem todas as suas vidas nos mínimos detalhes ou pelo menos o que lembravam delas entre um trago e outro de seus cigarros que fumavam de forma angustiante. Outras tardes, nós subíamos a colina, o que nos levava quase meia hora, só para ir à sorveteria local e pedir uma bola de sorvete do sabor mais estranho. O meu favorito era sabor azul, o nome do sabor era realmente azul e juro que tinha gosto de sonho. Muitas vezes caminhávamos à beira do rio até anoitecer enquanto ensaiávamos linhas de uma peça teatral imaginária ou cantávamos músicas italianas bobas.
Eram tardes agradáveis, leves e coloridas. Mas eu voltei pro meu mundo e meu amigo foi para um país distante de nome excêntrico. Agora ele escuta o vento e segue seus conselhos sem nunca questionar. Sei que um dia a gente vai se encontrar de novo e dividir uma bola de sorvete sabor azul enquanto conversamos sobre coisas transparentes.

23.5.06

Conversas estranhas. Parte dois.

@@ Alô.
### Oi. Sou eu.
@@ Oi. Nossa, você teve muita sorte. Acabei de encontrar meu celular no porta-malas do carro do meu primo, tinha perdido. Tenho a menor idéia de como ele foi parar no porta-malas, mas tudo bem. Diz.
### Marcela, você deu um tiro na máquina de lavar aqui de casa?
@@ Han!?!?!? Como assim Caio?
### Tem uma bala dentro da máquina de lavar, a casa está completamente inundada e você era a única aqui hoje de manhã.
@@ Eu escutei um barulho mesmo, até achei que a geladeira tivesse explodido. Fui até a cozinha olhar e nada. Aí pensei que tava apenas impressionada, tava vendo uma reportagem na TV sobre um pai que matou o filho porque o confundiu com um ladrão. Mas claro que não atirei na máquina de lavar. Não faz o menor sentido, nem sei atirar.
### Foda. Que merda. Pois eu vou indo. Tenho que resolver isso aqui antes dos meus pais chegarem.
@@ Sim, mais uma coisa. Tem dois peixes mortos no aquário do banheiro.
### Sério!?!?!? Mas eles tavam vivos quando saí, eu até dei comida pra eles.
@@ Bem, eles tavam mortos quando fui fazer xixi.
### Que merda. Que coisa foda. Meu dia tá um cú.
@@ Calma fica assim não. Quer que eu vá até aí te ajudar?
### Não cara. Ainda acho que foi você que deu um tiro na máquina de lavar. Foi mal.
@@ Mas por que eu faria isso?
### Sei lá.
@@ Ah então vai pra merda. Fala sério.
### Valeu. Tchau.
@@ De nada. Tchau.

Nunca mais se falaram, mas se encontraram depois de alguns meses em alguma locadora de vídeos da cidade. Ele a olhou com um ar de quem julga pessoas que atiram em eletrodomésticos enquanto segurava a mão da sua nova namorada, uma daquelas com cara de equilibrada. Ela o olhou apenas confusa, ainda sem entender o que aconteceu naquele dia enquanto escolhia sozinha se ia assistir novamente Kubrick ou Almodóvar. Acabou levando uma comédia romântica ridícula, daquelas que precisam ser devolvidas em 24 horas. E ele alugou “Fale Com Ela” pela terceira vez, afinal a namorada equilibrada nunca tinha assistido nenhum filme do Almodóvar.

17.5.06

"One Art"

The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

* Elizabeth Bishop

16.5.06

Embarques e desembarques.

Adoro aeroportos. Fico fascinada pela idéia de que a grande maioria das pessoas em qualquer um deles está em trânsito, em movimento. Marrakesh, Helsinque, Tóquio, Quebec, Buenos Aires, Nova Iorque, Rio de Janeiro, Havana, Santiago, tantas possibilidades. Sempre quis ir a Santiago, conhecer o Chile, os Andes. Nunca fui, tão aqui pertinho. Na maioria das vezes viajo só, acho até melhor assim. Já viajei com outras cinco mulheres da minha família, casamento de um primo que mora longe. Uma palavra resume a experiência, desastre. Prefiro viajar solo. Eu, um café com menta, uma revista com uma capa bonita e colorida, uma música boa, e minha mochila repleta de ambições sigilosas. Acompanhada apenas da sensação de inconstância, de movimento, de alternativas. Cada portão me guia para um lugar totalmente novo, basta sentar numa mesma poltrona desconfortável por algumas poucas horas. Fico encantada com o fato de embarcar numa aeronave com dezenas de pessoas que desconheço, todos voando numa mesma direção com propósitos tão opostos. Alguns retornam, outros deixam para trás, muitos sonham, e existem ainda aqueles que não percebem, que não se deliciam com o momento, muito preocupados com coisas sem importância ou pelo menos sem igual importância. Eu aproveito em silêncio. Preciso viajar logo. Colocar um tênis e um jeans confortável e ser apenas mais uma desconhecida, mais uma passageira, naquele mar de gente imersa numa estrutura arquitetônica fria, gigantesca, cercada de paredes de vidro, à procura de alguma coisa... alguma coisa inefável*.

*que não se pode nomear ou descrever em razão de sua natureza, força, beleza; indizível, indescritível.

12.5.06

Muro branco e portão de madeira.

Hoje eu ia num cartomante. Aparentemente, a maioria de Fortaleza já se consultou com ele, até minha mãe. É claro que eu, sempre alheia a quase todos os fatos terrestres de tons pastéis, não tinha a menor idéia da existência desse famoso. Duas amigas me convenceram a ir, admito que fui de fácil persuasão, até me empolguei. Elas me aconselharam a levar fotos. Não levei foto de ninguém, não precisava. Os meus olhos carregavam um negativo colorido de tudo que já passei e de todos os que agora habitam minha alma, bastava revelar o filme. Pelo menos, foi isso que pensei. Chegamos na porta do homem que seria responsável por me falar do passado, presente e revelar o futuro. Estava nervosa. Mas ele mandou uma mensageira dizer que não poderia nos atender, estava saindo de viagem, férias de três meses. Três meses. Nesse tempo, eu provavelmente não habitarei mais a terra do sol. Na verdade, acho que ele me viu. Acho que ele sentiu toda a minha angústia e preferiu que eu fosse embora, que me resolvesse sozinha. Acredito que teve medo de me confundir mais ainda. Obrigada pela sensibilidade. Mas sabe o que eu estava pensando? Agora tenho cinqüenta reais a mais do que havia planejado para o mês. Acho que vou fazer um piercing novo.

11.5.06

Corra Lola Corra.

“O jogo dura 90 minutos. Isto é um fato. Todo o resto é apenas teoria.” Após lançar essa simples regra, o filme nos dá o objetivo do jogo: Lola tem apenas 20 minutos para arranjar 100 mil marcos ou gangsteres irão matar seu namorado, Manni. Ready. Steady. Go!
Uma manhã, vinte para o meio dia, Lola, uma neopunk alemã de cabelo laranja avermelhado fluorescente, recebe um telefonema desesperado de seu namorado que precisa de 100 mil marcos até o meio dia ou seu chefe irá matá-lo. A protagonista permanece calma, o assustado Manni acredita que ela saberá o que fazer, mas ele a avisa que se ela não o encontrar em vinte minutos, irá assaltar um supermercado em frente à cabine telefônica da qual está ligando. Lola logo inicia sua jornada, correndo nas ruas de alguma cidade alemã até o banco onde seu pai é vice-presidente, esperando conseguir dinheiro com ele. As coisas não saem exatamente como ela esperava e o resultado é desastroso. Depois de apenas 25 minutos de filme, temos a impressão de que não existe mais saída. Então vemos na tela: “Game Over – insert 50¢ to continue,” e o filme volta ao início; Lola joga o telefone para cima e começa a correr novamente. A segunda tentativa acabe em desastre também, então Lola tem uma terceira chance para resgatar o namorado e resolver o problema.
A maneira como o diretor conta a história, é inovadora para o cinema. Para qualquer um de nós que cresceu na era dos videogames e gameboys, é quase óbvio que Lola simplesmente salvou o jogo logo quando ela falou com Manni no telefone para que pudesse voltar até lá e tentar de novo se chegasse a ler na tela: Game Over. E assim como em um joguinho eletrônico, Lola usa conhecimento adquirido previamente para antecipar obstáculos deixando a segunda e a terceira alternativa cada vez mais suave, a não ser até que um novo obstáculo surja. O filme é romântico sem ser mágico; cria um mundo onde tudo é possível: traições ou milagres de último minuto, lances de sorte ou azar etc. O diretor é um romântico do agora, que cresceu com MTV e videogames. Ele conta a história como um menino que é derrotado logo no início por seu joguinho favorito e aperta o botão Reset incansavelmente até conseguir o final que deseja.
Apenas assistindo o filme, nos sentimos cansados, enquanto a protagonista não sua ou para sequer por um segundo. A trilha sonora é composta basicamente de música eletrônica e é tão contagiante que quase faz você querer correr com Lola. É quase impossível desgrudar os olhos da ação, afinal o filme é cheio de ritmo e energia, nos deixa envolvidos e sem fôlego na luta da protagonista contra o relógio. Muitas vezes chega a parecer um longo e bom clipe musical ou uma série de televisão. A trilha sonora nos lembra constantemente da necessidade da velocidade, como no trecho: “like a heartbeat that never comes to rest.” A música nesse filme é dominante e pulsante com apenas alguns intervalos de charmoso e completo silêncio. O diálogo é quase inexistente exatamente por não ter tanta importância quanto a trilha sonora; é interessante observar nesse filme como a música é capaz de comunicar às vezes até mais que palavras.
O fato de Lola correr o tempo todo com toda a velocidade não é suficiente para Tom Tykwer, o diretor. Ele usa no filme: animação, slow motion (enquanto Lola corre você consegue até ver os músculos do seu rosto contraírem), close-ups extraordinariamente velozes, uma grande variedade de ângulos, cortes bruscos, edição no estilo de clipes musicais de rock, flashes do futuro e do passado, monólogos interiores, câmeras na mão, takes aéreos, telas divididas mostrando duas histórias concomitantes, etc. Corra Lola Corra é uma declaração de amor à velocidade no cinema, vida urbana, cultura pop e música eletrônica. A confusão em que Lola está inserida é uma re-interpretação da vida moderna e da nossa interminável luta contra o relógio e o acaso. Os momentos de silêncio deixam a imagem despida e vulnerável, como quando o funcionário do banco vai até o cofre para pegar mais dinheiro enquanto Lola vigia o pai com a arma roubada em mãos.
A personagem da menina de cabelos laranja avermelhado é o que dá unidade ao filme, qualquer lirismo que exista nesse filme emana dos ossos da protagonista. Com seu cabelo elétrico e roupa urbana punk e funcional, ela está pronta para qualquer ação. Emocionalmente, Lola parece uma garota de rua esperta, mas ao mesmo tempo inocente, dessas que vemos por aí nas ruas ou em clubes alternativos e underground. Um fato interessante é que ela não fica impressionada com o fato de que seu namorado está trabalhando para um gangster, mas a deixa inquieta a possibilidade de Manni ser assassinado como se ela nunca tivesse imaginado que algo assim pudesse vir a acontecer. A ingenuidade da protagonista dá ao filme um toque humano, seus olhos escuros apreensivos passam a imagem de alguém que torce pelo melhor, mas antecipa o pior. É fácil simpatizar com Lola, devido a sua devoção a Manni, mas não pelo simples fato de ser devotada ao namorado e sim pelo fato de ela conseguir se envolver tão profundamente e com tamanha força; uma punk numa missão de amor.
O filme é composto de três versões da mesma história. Os eventos em cada episódio se diferenciam muito pouco uns dos outros, mas essas pequenas distinções na narrativa evocam conseqüências e finais muito distintos. O filme trata do tema do destino e de como incidentes e decisões que nos parecem insignificantes podem afetar nossa vida diária mais do que imaginamos. Sim, você já viu algo do tipo antes; a temática já não é mais tão original. Filmes hollywoodianos como “Efeito Borboleta” e “De Caso com o Acaso” tratam do mesmo tema, podemos até dizer que eles todos tentam abordar um pouco a teoria do caos, que tenta explicar o fato de que resultados complexos e imprevistos podem e irão ocorre em sistemas que são sensíveis às suas condições iniciais. Um exemplo propositadamente exagerado dessa teoria é conhecido como efeito borboleta. Esse exemplo diz que, em teoria, o bater de asas de uma borboleta na China pode afetar o clima em Nova Iorque, apesar de estar a milhares de quilômetros de distância. Em outras palavras, a teoria tenta apontar que é possível que um acontecimento muito pequeno possa produzir resultados imprevisíveis e às vezes drásticos através da ativação de eventos cada vez mais significativos.
Apesar de o tema já ter sido abordado por vários outros filmes, a fórmula nunca foi tão bem aplicada quanto nessa audaciosa, ingênua e visualmente estilizada compilação de vários “e se,” que funcionam dentro da lógica peculiar do filme. Corra Lola Corra é eficiente em um nível puramente instintivo. Palmas para essa celebração incontrolada do prazer da velocidade no cinema.

10.5.06

Apelo abstrato.

Palavras são meras convenções humanas. Temos então todo o direito de aplicá-las como bem quisermos. Com ou sem sentido, com ou sem propósito, para machucar ou alegrar, para ludibriar ou enaltecer, etc. Cada substantivo abstrato, mil sentidos, centenas de convenções, inúmeras sensações, infinitas possibilidades.
Existe palavra que mais assume papéis diferentes do que a de todos favorita, aquela de quatro simples letras, amor? Acredito que não. Afinal nós, humanos cheios de receptores nervosos, sedentos de amor verdadeiro, a usamos e a abusamos com freqüência. Nós a utilizamos sem cautela como munição, mesmo que mirando em alvos errados, a fim de que o sentido convencional desse simples substantivo se transforme em algo mais, em um sentimento real e honesto. Mas é tão difícil. Afinal é um sentimento tão complexo, tão cheio de sentidos alternados e instáveis.
Por meio destas poucas palavras expostas numa tela sem vida, venho na verdade fazer um apelo. Não vamos subestimar a força dessa pequena colega de construção bela, dessa palavra quase sempre insensata, mas sempre bem-vinda. Vamos usar, abusar, falar que amamos, mas apenas se de forma intensa, sincera, um pouco irresponsável e quase nada individualista. Que é o jeito certo de amar, mesmo que breve.

4.5.06

"Texto Para uma Separação"

olhe aqui, olhos de azeviche
vamos acertar as contas
porque é no dia de hoje
que cê vai embora daqui...
mas antes, por obséquio:
quer me devolver o equilíbrio?
quer me dizer por que cê sumiu?
quer me devolver o sono meu doril?
quer se tocar e botar meu marcapasso pra consertar?
quer me deixar na minha?
quer tirar a mão de dentro da minha calcinha?
olhe aqui, olhos de azeviche:
quer parar de torcer pro meu fim
dentro do meu próprio estádio?
quer parar de saxdoer no meu próprio rádio?
vem cá, não vai sair assim...
antes, quer ter a delicadeza de colar meu espelho?
assim: agora fica de joelhos
e comece a cuspir todos os meus beijos.
isso. agora recolhe!
engole a farta coreografia destas línguas
varre com a língua esses anseios
não haverá mais filho
pulsações e instintos animais.
hoje eu me suicido ingerindo
sete caixas de anticoncepcionais.
trata-se de um despejo
dedetize essa chateação que a gente chamou de desejo.
pronto: última revista
leve também essa bobagem
que você chamou de amor à primeira vista.
olhos de azeviche, vem cá:
apague esse gosto de pescoço da minha boca!
e leve esses presentes que você me deu,
essa cara de pau, essa textura de verniz.
tire também esse sentimento de penetração
esse modo com que você me quis
esses ensaios de idas e voltas
essa esfregação
esse bob wilson erotizado
que a gente chamou de tesão.
pronto. olhos de azeviche, pode partir!
estou calma. quero ficar sozinha
eu co'a minha alma. agora pode ir.
gente! cadê minha alma que estava aqui?

* Elisa Lucinda

3.5.06

Calibrando cores.

Eu sou amiga do menino mais ciano de todos os tempos. Ele não é azul-turquesa nem azul-crepúsculo, ele é totalmente ciano, mas, como todo menino, sente a necessidade de ser visto como azul-escuro. Pura insegurança. Um dia eu o presenteei, por engano, com uma lata de tinta preta; dois dias depois já estava tudo negro. O erro foi meu, é verdade, eu o confundi. Tentei corrigir meu deslize de todo jeito, com um telefonema amarelo, um pedido de desculpas vermelho, uma mensagem laranja, mas nada adiantava. Tudo continuava da cor do meu pingente de berinjela. Eu tinha a obrigação de melhorar a situação; não podia deixar o menino ciano pensando que eu o via como alguém que merecia uma lata de tinta preta como presente. Fabriquei uma tarde de um céu bem azul-celeste para que eu, que me alimento de cores, tentasse retirar o preto e adicionar ciano novamente. A tarde foi boa, mas as cores ainda não ficaram perfeitamente calibradas. Pelo menos ele já entende que na verdade o que eu sempre quis foi o presentear com uma lata de tinta magenta. Afinal ciano fica lindo com magenta.

2.5.06

Sedenta por totalidade.

Os objetos materiais sólidos da física clássica se dissolvem no nível subatômico, em padrões de probabilidades semelhantes a ondas. Além disso, esses padrões não representam probabilidades de coisas, mas sim, probabilidades de interconexões. As partículas subatômicas não têm significado enquanto entidades isoladas, mas podem ser entendidas somente como interconexões, ou correlações entre vários processos de observação e medida. Em outras palavras, as partículas subatômicas não são “coisas” mas interconexões entre coisas, e estas, por sua vez, são interconexões entre outras coisas, e assim por diante. Na teoria quântica, nunca acabamos chegando a alguma “coisa”; sempre lidamos com interconexões.
É dessa forma que a física quântica mostra que não podemos decompor o mundo em unidades elementares que existem de maneira independente. Quando desviamos nossa atenção dos objetos macroscópicos para os átomos e as partículas subatômicas, a natureza não nos mostra blocos de construção isolados, mas, em vez, disso, aparece como uma complexa teia de relações entre as várias partes de um todo unificado.

* Fritjof Capra em A Teia da Vida.

1.5.06

Ausência de cor é o princípio do fim.

Sem cor e sem foto você um dia me falou coisas azuladas. Você me faz mal. Fala comigo como se eu não pertencesse. Mas era exagero, nem era assim. A vida é tão simples. Eu gosto de você, você gosta de mim, eu não gosto dele e ela me detesta. Acabou, simples assim. Gostar não devia fazer mal. Mas tudo certo. Somos diferentes e é isso que complica. Vai ver a vida nem é tão simples assim como penso, mas eu bem que queria que fosse. Como carrinho de bate-bate e intestino gigante cor de algodão doce.

30.4.06

Paixão = Amor + Medo

Ah sim. É verdade. Eu te amei. Tantas coisas fáceis de amar, tantas lembranças. Segurança, palavras carinhosas, presentes, tranqüilidade, sonhos coloridos, filme no domingo, jantar japonês na quarta, cama na sexta, rotina. Eu dava um espirro e o telefone já tocava; era você perguntando se eu estava bem. Você cuidava de mim e me fazia rir, mas também conseguia irritar pelo simples fato de ser você melhor do que ninguém. Orgulho de estar do meu lado, tão lindo. Segurava minha mão com força, nossos dedos entrelaçados, mostrando a todos os que desejassem saber quem era o real objeto de todo seu afeto.
Eu chorei. Chorei por nós. Era o fim. Eu era amor e você ainda era paixão, para sempre paixão. A Andréa me ensinou a nossa diferença ontem, ela consegue explicar tudo de forma tão clara, incrível. Amor é paz e paixão é amor mais medo. Eu não tinha mais medo. Quando eu fui, você não entendeu que eu voltaria, nunca entendeu isso. Não entendeu que se me deixasse viver, experimentar, crescer, eu seria sua. Tudo que você disse e fez, todo toque, toda bondade, todo comentário adorável, todo beijo, tudo tinha o peso de uma frase insustentável: talvez agora, com isso, ela me ame para sempre. Isso o deixou fraco. E se não vou amar alguém forte, qual o porquê de amar?

29.4.06

Conversas estranhas. Parte um.

### Eu já estive naquele restaurante. Naquele que você trabalha. Eu vejo você lá às vezes.
@@ Sério?
### Você provavelmente não lembra de mim.
@@ Bem, eu... Eu tenho a memória muito ruim...
### Não, não, eu entendo. Muita gente entrando e saindo. É um lugar agitado. Você é muito feliz lá. Eu já notei. Quer dizer, eu sei que você tem que ser, não é? Se você for abusada, você não recebe gorjetas, você perde o emprego, mas você é diferente. É como se você realmente gostasse do que está fazendo ou algo do tipo. Eu já notei. É legal. Sei lá, depois de um tempo começa a dar nos nervos... mas é legal. É.... Eu estava lá um dia, eu lembro, e tinha esse cara, um completo idiota, ele tava usando uma jaqueta xadrez fluorescente. Você lembra? Que cara imbecil!
@@ Bem…
### Quero dizer, o cara realmente...
@@ Eu acho que ele andava bebendo.
### Eu teria despejado uma garrafa de café no colo dele.
@@ Não.
### Ou tacado a garrafa de ketchup na cabeça dele.
@@ Ele não fez por mal.
### Tá vendo? Você... Sempre feliz. Sempre… pra cima. Mas isso é bom, sabe? Quero dizer.... Isso que você faz. Ser feliz o tempo todo. Então, de onde você é Ana?
@@ Você sabe o meu nome? (ele aponta para o broche com o nome no seu peito, ela ainda está vestida para o trabalho) Ah, claro, claro. Desculpa. É que eu…
### De onde você é?
@@ Ah sim. Eu sou de Quixadá.
### Ah!
@@ Cidade pequena do interior.
### Bem. Isso explica tudo.
@@ Como assim?
### Quixadá. Nossa. Aposto que todo mundo é assim como você em Quixadá. Felizes, sorridentes... Andando de cavalo pra cima e pra baixo, ordenhando vaquinhas.
@@ Eu nunca andei de cavalo na minha vida.
### Uh hum.
@@ E eu nunca nem toquei numa vaca.
### Claro, claro. Eu acredito em você.
@@ Você nunca esteve em Quixadá na vida, não é?
### Não, mas já li a respeito.
@@ Já leu a respeito?
### Já.
@@ Onde?
### Nos livros da Rachel de Queiroz.
@@ Você não sabe nada sobre Quixadá.
### Bem... Talvez não.
@@ Além do que, se você fosse se basear em alguns desses livros, você devia esperar que todo mundo em Quixadá fosse mais como você.
### Como eu?
@@ É.
### O que você está querendo dizer?
@@ Não sei.
### Você não sabe?
@@ Quer dizer… sei lá… assim como você.
### Como o quê?
@@ Como... você. Eu não sei.
### Como é que eu sou?
@@ Nada.
### Não, sério, eu quero saber.
@@ Não é nada. Desculpa. Eu não quis dizer nada. Você é apenas… carrancudo, você sabe nebuloso... meio assustador.
### Assustador?
@@ Quer dizer…
### Assustador?
@@ Desculpa…
### O que você quer dizer com “assustador”?
@@ Nada. Eu...
### E nebuloso? O que significa nebuloso?
@@ Eu nem sei ao certo, você...
### Quem usa uma palavra como “nebuloso”?
@@ Desculpa, eu só....
### Vem aqui e me chama de “assustador” e “nebuloso”.
@@ OLHA! VOCÊ QUE PERGUNTOU! Desculpa se eu o insultei.
### Assustador....
@@ DESCULPA! O que é que você está fazendo aqui afinal de contas? Porque você está me aperreando?
### Aperreando você?
@@ Você sabe o que eu estou querendo dizer.
### Eu não sabia que eu estava aperreando você.
@@ Eu estava tendo um dia super tranqüilo, até você aparecer...

28.4.06

Eu mudo, você fala.

Fui interpretar minha dor através de palavras alheias, dançar minha angústia ao som de uma guitarra que não entendo e cantar em voz alta minha felicidade inconstante. Fui e sentei sem querer muito. Mas aí aquela cadeira e aquela mesa falaram comigo, diretamente comigo. Falaram uma coisa, daquelas coisas que todo mundo sabe, pensa, ou pelo menos que eu sempre soube e pensei e nunca soube exatamente como colocar em palavras.
“O você que eu conheço só existe quando do meu lado.” Que delícia. Tudo ficou tão mais bonito. Para sempre eu terei a minha lembrança de você, um você só meu, um você que sem mim não existe. O você com o qual entro em contato na companhia do meu quarto não é o meu você, é o de outro alguém e esse você não me encanta. E eu já não sou mais o eu que era quando ao lado do você que era meu. Espero que esse outro você que fala de mim com desafeição entenda que eu que escrevo isso não sou o seu eu. Você e eu, nós, múltiplos. Uma coexistência finita de seres infinitos. Até o próximo eu.

27.4.06

Ponto de mutação.

Sabe o que eu mais quero?
Quero me entregar.
Não quero mais colorir minha vida com palavras verdes.
Quero revelar tudo sem medo, mesmo que preto e branco.
Não quero mais ser mecânica, nem laranja, nem industrial.
Quero ser orgânica, pertencer ao todo.
Não quero mais pensar de forma dualista, simplista e banal.
Quero ver tudo de forma holística, sistêmica.
Preciso ser mais humana.

Dois protagonistas.

Cabelo laranja. Raízes escuras. Gesso azul no braço direito. Argola no lábio inferior. Alargador verde. Pulseiras coloridas. Roupa amassada. Tênis amarelo. Calça rasgada. Olhos azuis. Pele branca. Unhas sujas. E um sorriso fascinante.
Cabelo cereja. Raízes escuras. Argola no nariz. Pulseiras coloridas. Roupa amassada. Tênis xadrez. Calça manchada de tinta laranja. Casaco felpudo, verde rosa e azul. Pele pálida. Esmalte vermelho descascando. E um sorriso indefenso.
Dia escuro e frio. Teatro lotado. Cabelo laranja e menina de unhas vermelhas descascando sobem no palco juntos. Sinergia. Ele prende a respiração e ela o guia na jornada. Ela consegue o papel e ele também. Entre as cinqüenta pessoas na audição, os escolhidos. Peça de apenas dois personagens, dois protagonistas, ela e ele.
Assim se conheceram. Estavam perdidos. Felizes. A aproximação foi rápida. A conexão imediata. Toda terça, quinta e sexta após os ensaios, a mesma rotina. Café de menta com chocolate na Pandora. Cigarro com um toque de tangerina. Horas de conversa sobre tudo e nada. Cumplicidade descomprometida. Detalhes simples da vida revelados naturalmente. Proximidade e distância.
Para sempre ele será o artista inconformado, lindo e sombrio da menina cereja; e ela sua atriz excêntrica, colorida e inquieta.

26.4.06

Não somos formigas.

- Quero fazer alguma coisa diferente.
- Mas o que, Rafa?
- Qualquer coisa. Estou tão entediada, é tudo sempre igual. A mesmice mecânica dessa sociedade dialética e hipócrita me cansa. A vida não é assim tão simples.
- Mas o que, Rafa?
- Eu deixo ser tudo sempre igual, não faço nada. A culpa é nossa. Quero fazer alguma coisa. Precisamos fazer algo espontâneo agora. Precisamos viver, sentir, transcender.
- Mas o que, Rafa?
- Vamos até a praia. Correr em direção às ondas, assim sem olhar para trás, sem tirar nossas roupas, sem pensar em mais nada. Vamos nos jogar e sentir a água quente salgada e negra levar embora tudo que já não precisamos mais.
- Mas está de noite, Rafa. É perigoso.
- Não importa. Precisamos fazer isso agora.
- Está bem. Vamos.
- Sério?
- Sério.
E fomos. E foi renovador.

25.4.06

Constelação imaginária.

Aos doze anos depois de um pequeno episódio de rejeição, meus pais me mudaram de escola como de costume, e eu entrei no meu sexto novo colégio. Estava começando a quinta série. Minha mãe comprou cadernos novos, mochila nova, canetas, lápis e borrachas novas. Estranha filosofia essa de que se tudo fosse novo, eu seria uma nova pessoa. Eu até tentava, mas depois da primeira semana, nada era novo inclusive eu. Estava deprimida; mas na época eu não sabia que era mais triste do que as outras crianças, eu apenas as achava diferentes e estúpidas.
Como sempre, eu detestei meu novo colégio, então criei vários joguinhos imaginários para passar meu tempo. Eu comprava dezenas de balinhas e ia distribuindo pelo chão do colégio e observando a reação das pessoas que as achavam ou pregava moedas nas paredes para formar uma constelação imaginária. Eu sempre observei, mas como não fazia barulho e quase flutuava pelos corredores, nunca pensei que pudesse chamar atenção suficiente para ser objeto de observação.
No final, como qualquer história real, eu não fiz nenhum amigo; e com o término do ano letivo, o colégio pediu para os meus pais me retirarem da escola, pois eu não conseguia me adaptar. Ainda hoje não considero fácil nenhum tipo de adaptação, e ainda por cima tenho um sério problema de audição e reumatismo. Acho que nasci para a introspecção e inquietação.

Son of a Preacher Man.

Você já jogou um compact disc pela janela de um carro em movimento durante um ataque de raiva?
Eu já. Trilha sonora de Pulp Fiction.
E foi muito bom.
“Being good isn't always easy. No matter how hard I tried.”

24.4.06

Asas cor-de-rosa são as melhores.

Estava sozinha em casa pensando sobre coisas que não voltam mais e precisando de ajuda quando uma menina de asas me ligou. Tão linda. Ela me convidou pra voar por aí e eu fui. Fui assim sem pensar muito se queria mesmo ir ou não; fui só porque ela tem asas e eu não consigo mais dizer não para seres alados, eles são muito raros hoje em dia.
Eu estava triste e minha amiga de asas cor-de-rosa também, mesmo triste ela faz bem pro meu espírito. Tenho sorte; tenho muitos amigos que fazem bem pra minha pequena alma azul e inquieta. Minha amiga alada logo vai partir, mas sei que durante seus vôos noturnos secretos, onde quer que eu esteja, ela sempre vai visitar meus sonhos e desacelerar meu pensamento.

23.4.06

Hoje lembrei de você.

Minha memória é um negócio interessante, ela nunca funciona de maneira correta ou linear. Devido a esse fato, nunca sei ao certo se as histórias que conto são verdadeiras ou apenas frutos maravilhosos da minha imaginação; não lembro de quase nada da minha vida anterior ao tempo em que comecei a registrá-la com um papel e uma caneta. Meu irmão lembra de detalhes interessantíssimos, doces e reais da sua infância. Eu não o invejo, pois amo minhas lembranças mesmo que falsas.
Hoje lembrei de você e sabe o que aconteceu?
Adorei não saber se era verdade ou só minha imaginação.

Domingo.

Nasci. Hoje de tarde.
Não estava chovendo.