17.10.06

|T|udo |P|reto |M|omentaneamente

Ontem acordei cansada daqueles mesmos olhos grandes, escuros e tediosos me olhando de volta sem nenhuma curiosidade no espelho embaçado por causa do vapor. Passei a manhã inteira aborrecida com aquele meu jeito de andar e falar tão sem graça e principalmente com aquele meu problema de audição estúpido que em dias mais bonitos já me pareceu tão charmoso. Sem vontade de fazer nada ou de interagir com mais ninguém além daquela pessoa que hoje era um enigma, mas da qual não podia escapar, passei a tarde toda no meu quarto de paredes completamente brancas. O tempo inteiro sem paciência para aquelas mesmas músicas no meu computador, aquelas mesmas roupas no armário, aquelas mesmas palavras no livro vermelho e aquelas mesmas sardas no corpo inteiro. Tudo idêntico a sempre. Dominada por uma ambição de trocar de corpo e de ir pra um lugar bem distante a fim de ver cores e pessoas inusitadas evitei o resto do mundo. Estava tão cansada de tudo aquilo que até dormir foi difícil. Alcançava apenas um sono inquieto e facilmente perturbado, consciente da vontade de dormir, consciente da incapacidade de relaxar, um sono que não buscava o descanso, não almejava sonhos, ansiava apenas pelo fim daquele dia impraticável. Ontem era impossível lembrar que o episódio desastroso era temporário, mas hoje já voltei a achar minhas sardas únicas e delicadas e amanhã com certeza volto a enxergar turquesa e magenta por todo lado.

Namorada.

...love’s just a game, broken all the same
and I will get over you

love’s just a lie, happens all the time
swear I know this much is true...

- Déa, se prepara que lá vem o hooooooo woooooo wooooo woooooo wooo hoooooooo.

E era todo dia assim, durante aqueles dias em que eu precisava dela e ela de mim e que selaram uma amizade para sempre. Uma daquelas amizades boas que só acontecem de vez em quando e dão direito a cereja gigante, milhares de quadradinhos brilhosos, arroz na China, ponto de ônibus e travesseiro, bolinhas e xadrez, labirinto na neve, trilha sonora, sacos enormes da melhor pipoca doce, jardins bonitos e luvinhas coloridas sem dedo. Daquelas que dão de presente lembranças cintilantes e momentos que podem ser revelados da forma certa com apenas quatro cores.
Saudades dela.

6.10.06

06 + 10 + 06 = 1/4 x 100

Vinte e cinco anos foi tempo suficiente pra fazer tanta coisa bonita e ainda sobrou tempo pra algumas coisas absurdas. Só me arrependo das várias vezes que fingi não saber que era a hora certa de dizer que eu estava enganada. Mas nem esses momentos submersos em medo e orgulho me impediram de ver, ler e ouvir muito, andar infinito e conversar sobre o impossível.
Sabe o que eu já fiz?
Com certeza bem mais de trinta e quatro milhões de coisas. Já deitei de braços abertos na areia fria e laranja daquele deserto bonito olhando pra cima à procura de formas anômalas voadoras durante uma madrugada inteira, uma vez assisti a uma chuva de meteoros no meio de uma floresta bem longe das luzes da cidade enquanto escutava Dylan me falando pra não pensar duas vezes, em uma dessas tardes que ficam mais ou menos no meio da linha atual eu vi um polvo mudar de cor e textura com uma naturalidade invejável e usei o esqueleto de uma baleia como meu trono surreal, várias vezes tomei sorvete azul com aquele meu amigo alto demais enquanto andava despreocupada nas ruas daquela cidade muito antiga cantarolando músicas italianas felizes, uma noite assisti ao vivo àquela banda que nomeou um álbum de sujo e na mesma noite a filha da Gordon decidiu entrar no palco rodopiando de braços abertos e olhos fechados, fui responsável por aferir radiação, lavar tubos de ensaio e brincar com crianças, conheci um monte de gente legal e já também esqueci o nome de um monte de gente legal e há pouco tempo encontrei meu par no meio de várias pessoas que desconheciam a importância daquelas palmas.
Hoje, assim que acordei, escolhi vinte músicas especiais e salvei como a playlist do dia seis, li um e-mail lindo que falava de coisas fora do comum, acendi um incenso verde, bebi um copo de água bem gelado, escrevi isso e agora vou levantar da cama e começar a viver meu segundo quarto de século.
Vai ser tão bom.