28.5.08

Carta de Amor.

Fortaleza, algum dia de Maio de 2008.

Meu querido,
Lembre sempre dos dias felizes, só eles valem no futuro.
Hoje, é tudo diferente. Aquele som grave é confortante e o barulho agudo das ruas, completamente inocente. Já eu, no meio, culpada. Nem adianta falar que está tudo bem, que passou. Sei que é mentira e sei muito bem que a culpa é minha. Sou uma coisa. Na verdade, uma mistura de coisas, que acha bonito ser feio, ser sujo e que depois sofre, pensa, raciocina horrores. O racional é ir lá, é saber, resolver logo tudo, mas não suporto a dor de imaginar o que não quero. A escuridão é aconchegante, feliz, incoerente. O preto. Vazio e cheio. No escuro, posso brincar de me esconder, sem o inconveniente de ser descoberta. Aqui, só eu posso me tocar, me enxergar, me maltratar, me existir. Mas aí existe você. Comigo. E eu prefiro sentir o sol incinerar minha pele a imaginar que posso ser o motivo de seu pesar. Não está tudo bem, não insista. Eu sei bem onde pequei. Eu sei, estou roubando o teu mundo, acabando com teus músculos, enfraquecendo tua língua, arrancando teus dentes, sugando órgão inteiros, cuspindo pedras. Vai embora, corre, voa, grita e me fala a verdade. Grita e me diz com altivez: Não, não te quero mais, não te amo! Só assim posso te assistir indo embora tranquila. Só peço que me permita guardar o teu sorriso na gaveta e teus olhos no porta-luvas, um pouco de tudo que eu sempre precisei, você. Nunca soube lidar com isso de você ser, de um jeito só seu, tudo. De novo, medo. Estou jogada no asfalto, esperando a dor, a pressão, o impacto. Preciso ser reanimada, trazida de volta ao mundo dos terrenos, mas chega! Essa não é sua função. Não me permita mais, me dê um limite, me jogue na rua, que é o meu lugar, junto com coisas quebradas e com comida podre. Estou desmantelada, fedida, nojenta, vermes habitam meu corpo e serpentes, o meu cabelo. Sou uma coisa indesejada, arrogante, feia e quase infeliz. E nem pense em me oferecer um cobertor! O frio é meu aliado, adormece.

Com muito carinho,
Coisa Menina.

"Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente."
Drummond

2 comentários:

Déa disse...

que lindo, minha amiga.

filipe acácio disse...

fico construindo personagens em cima de suas palavras... intenso e forte.