6.4.10

Viver é muito perigoso.

Noel tinha a pele de algodão. Era tão branquinha, tão delicada, que eu estava sempre a postos. Preparada para, a qualquer momento, assistir aquele coração escapolir e pousar ali, certinho no meu colo. O cabelo dele era bem ralinho, mas castanho. Mar-rom. Cor de lápis de cor. De terra molhada. O contraste com a pele, com a neve, era mágico. Só vendo, só rindo, que beleza. Era encantador, bendito Noel. Os olhos, verdes de um verde-cinza, eram indecisos, melados. Doidinhos de viver. O sorriso, esse era certamente de um outro mundo. Esbanjava uns caninos pontudos e longos, que deixavam ele com aquele ar vampiresco, um verdadeiro príncipe. Meu Noel. Doce Noel. Noel-beijo. Noel-abraço. Noel-flor. À noite, ele virava nós, e parecia que, mesmo adormecido, continuava transpirando palavras de amor, me embalando, lenta e (e)ternamente, com aquela voz mansa, quente. Segundos sem fim. Eu e ele, apenas dois corpos compartilhando momentos de quase morte, entre aqui e lá. Acolá, já.

Ele chegou na minha cidade convidado pelas tulipas, que já habitavam todos os quintais, calçadas, canteiros centrais, quartos, camas, sofás. Meu vizinho meio perdido havia plantado, durante o inverno, sementes de tulipas gigantes, amarelas. Duvidei, mas lá estavam elas, enormes, brindando com o vento a chegada de Noel. Encantado Noel. Cantando desvarios, uivando amor. Trouxe com ele uma caminhote azul aos pedaços e uma câmera fotográfica velha, bonita, soluçando lembranças. Sem vacilar, tocou a minha campainha, e, sorrindo ding dongs me convidou para a viagem. Depois disso, não consigo mais separar fantasia de ficção. Não lembro se foram meses ou dias. Não lembro quantos anos eu tinha. Nem mesmo sei se Noel era realmente o seu nome. Ele me chamava de uma coisinha linda, inventada por ele. Era uma música. Como era? Quais eram as notas? Não lembro.

Mas lembro sim - lembro muito bem - da casinha do começo do século passado para a qual nos mudamos. Os azulejos do banheiro, já quebrados, sujos, cheios de histórias para contar, tagaleravam. Lembro de tomar banho e conversar com as paredes velhas enquanto ele cozinhava para mim. Uma noite, bolinho de caranguejo. Outra, omelete de cogumelos. Salmão grelhado com aquele molhinho doce importado de nome difícil que só ele sabia onde encontrar. O cheiro. Tão bom. Eu lembro. Como lembro. Foram dias em que eu flutuei, sempre sorriso de ponta a orelha. Não consigo apagar do baú-cabeça como me sentia enquanto subia as escadas, degrau por degrau, aquele cheiro. Madeira, gelo, pinho, pimenta, mais um, outro, âmbar, amaciante, algodão, mais um, gengibre, manjericão, lá vem o último. Pronto. Logo ali, em pé, enfeitando a mesa com flores, ele e aquele suéter de lã velho que se misturava com a pele, com o cabelo, tudo uma coisa só. E assim, jantávamos juntos todas as noites. Conversávamos e morríamos de rir da nossa vida tão delicada, por um fio, nossa casinha velha, aquele piso de madeira musicado. Bebíamos nosso vinho, nossa cerveja escura, doce. E depois do jantar, eu sentava no colo dele, olhávamos juntos nossas novas fotos, todas coloridas. Ele as revelava dia após dia, inúmeras - coloriam nossas paredes. Fazíamos promessas de amor, incontáveis, todas novas. E impossíveis, todas. Ainda levitando, eu ia lavar a louça e ele tomar banho. Eu insistia em preparar o café. Horrível! Mas ele sempre voltava. Ainda mais branco, translúcido, quase escapando desse mundo. Os cabelos molhados, pingando fantasias. E aqueles dentes todos paquerando comigo.

Uma delícia, nossa rotina, nosso pedaço de dia, nossa noite.

Vivemos um tempo juntos, eu e ele. Não lembro ao certo quanto tempo, mas foi todinho nosso aquele tempo. Eu era muito jovem. Já dele, nunca soube a idade. Bonito, o ar de quem viveu amando enganava o tempo. Noel tentava me explicar o nosso amor. Narrava nossas aventuras, fotografava nosso futuro. Rabiscava nossos filhos. Escrevia tudo: Isabela, Aurora, Valentim, Benjamin, Bela. Já eu, comecei a desenhar sonhos fora da nossa casinha de madeira. O jardim foi ficando feio, descuidado. O inverno chegando, as tulipas todas morrendo. Nossa horta, abandonada. Eu não colhia mais os pepinos, que teimavam em aparecer. Os tomates morriam sozinhos. Fantasiei, perdi a cabeça. Fui, aos poucos, abandonando Noel. Ele sussurrava: você está desaparecendo. Não te encontro. As cores estão sumindo. Tudo preto. Tudo branco. Mesmo assim, eu corria endoidecida na direção contrária, evitava voltar. Não olhava mais para os bolinhos de caranguejo. Não brindava mais o amor. Não coava o café. Tinha raiva daqueles azulejos sujos, aquele lodo me enojava. Não trocava mais uma palavra com as paredes. Fingia que nada daquilo existia.

Um dia, decidi. Aquela seria a última vez que eu entrava na casinha da Rua Girassol. Sem pensar muito, juntei tudo que eu julgava ser só meu. Roupas, livros, músicas, cheiros, lembranças, palavras, promessas, cantos, teias de aranha. As fotografias, deixei todas lá. Emolduradas. Coloquei o resto em caixas e subi tropeçando escadas. Bêbada de sentimento. Não senti cheiro de nada, prendi a respiração. Aperreada. Do lado de fora, um Noel de faz-de-conta já me esperava com o carro ligado. Eu ri tanto. Ri muito. Dele. Me pedindo perdão. Chorando. Implorando para eu ficar. Eu? Derramava o nosso amor. Ele? Cantarolava doçuras. Todo mel e jasmim, morangos, doce de leite. Nada. Eu não era nem feliz, nem triste. Aos poucos e bem devagar, ele ajoelhou na minha frente, tirou uma aliança do bolso e ofereceu com todo o amor do mundo, com os olhos verdes mais sinceros: casa comigo.

Em mim, nada eram flores, nada botões. Tudo inverno. Infelizmente, meu querido Noel, as tulipas, agora, só no ano que ainda estava por vir. E isso parecia tão distante. Impossível. Então, eu, apenas uma menina, abri a porta da rua e fui embora. Sem tchau nem porque. Com a pressa de quem não sabe para onde vai. Depois, soube que, passado alguns dias, ele também abandonou a casinha. As fotos ficaram lá, sorrindo para as paredes, tratando de apresentar a casa aos futuros inquilinos. Noel havia arrumado a caminhonete com o que sobrou da história e seguido viagem. Sem mim.

Ao som de: Mil Perdões, Chico.